"Quando um cronista quer demonstrar que o que corre mal em Portugal já corre mal há muito tempo, costuma dar um exemplo histórico qualquer para comprovar que o que estamos a viver já foi vivido por antepassadas gerações. O Vasco Pulido Valente costuma servir-se, com muito propósito, da Monarquia Constitucional e da Primeira República. Outros, mais mainstream, ficam-se pelo Estado Novo ou pelas Descobertas. Acompanha a crónica, normalmente, a frase de Marx que diz que a história se repete, primeiro como tragédia, depois blá, blá, blá.
Eu não sou diferente dos outros cronistas, apenas superior. Por isso vou ainda mais atrás, ao refugo histórico, para apontar as causas desta baderna em que actualmente medramos. A meu ver, o país é como é devido à nossa falta de educação. Somos um país de mal-educados desde há muitos séculos. Não me apoio no cliché de termos sido fundados por um filho que bate na mãe (facto que reputo de mera irreverência), mas sim num episódio que remonta ao Interregno de 1383/85, quando o Mestre de Aviz, futuro rei, se dirigiu ao Paço para matar o galego João Fernandes, Conde Andeiro. Conta Fernão Lopes que, lá chegado o Mestre, o Conde o convidou a sentar-se à mesa e a comer com ele. Ao que o Mestre se negou, que já tinha almoço preparado em casa. «"Nom comerei", disse o Meestre, "ca tenho feito de comer"», segundo escreve Fernão Lopes (antes do acordo ortográfico que precede o acordo ortográfico que este novo vem substituir). Depois, D. João pede ao Conde que se retire com ele, que lhe quer dar uma palavrinha, acabando por lhe dar antes com um cutelo. O resto até pode ser história, mas isto é má-criação. Não falo do homicídio, que, pronto, faz parte; mas a chacina não impede que se aceite um amável convite para papar. Muito menos implica que se interrompa uma refeição ao futuro defunto. O Conde Andeiro podia ser um velhaco, mas escusava de morrer com fome.
Foi uma tremenda falta de etiqueta. E de gosto: se há coisa em que os galegos são bons é na comida. (E nas mulheres bonitas, mas neste caso estamos a falar de comida.) Recusar um petisco de um galego, bem mais que uma desfeita, é parvoíce. D. João não tem desculpa. Está bem que o país estava em crise, mas nada justifica a descortesia. Lá por ser bastardinho, não lhe é escusada a observância das regras de cerimónia. Vai-se a ver e aquilo que parece um apontamento de coscuvilhice de Fernão Lopes é, afinal, de grande importância para explicar Portugal. Porque se trata de um herói português, de um mito fundacional, e não era necessário prescindir da urbanidade para salvar o país.
Claro que um povo que não dá importância a este pormenor de polidez básica é o mesmo povo que protesta contra a imposição de regras de vestuário num serviço de atendimento público como a Loja do Cidadão. Uma óbvia medida de urbanidade é repudiada porque, em Portugal, se confunde civilidade com subserviência. Ficava diminuído o Mostre por aceitar uma chouriça do Conde antes de o matar?
P.S. Eu também achava mal o dress code, até ir no outro dia à oficina e o mecânico estar impecavelmente vestido de fato e gravata. Desconfiei e levei o carro a outro sítio."
Crónica de José Diogo Quintela in 'Falar é Fácil'
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